A ideia de descobrir uma cura definitiva e eternamente válida para o câncer talvez não seja o melhor modo de se lidar com a doença que, no Brasil, atingirá cerca de 600 mil pessoas neste ano, segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca). Para o oncologista e hematologista Daniel Tabak, a dificuldade começa na própria definição de cura, uma vez que novos métodos de detecção podem ser capazes de encontrar células tumorais mesmo após os cinco anos em que, sem a doença, os pacientes são considerados curados. Tabak destaca que as pesquisas atuais, que apontam para a evolução da imuno-oncologia nos últimos anos, são vitais para a transformação do câncer em uma doença crônica, que permita aos indivíduos continuar com suas atividades normais ao mesmo tempo em que mantém a patologia sob controle em seus organismos.
O que significa curar o câncer hoje em dia?
Atualmente, dizemos que um período de cinco anos sem os sinais de câncer significa a cura. Isso significa a não detecção dessa doença pelos métodos atuais. Hoje esse conceito está mudando. À medida que utilizamos meios mais sensíveis, muitas vezes é possível identificar a presença de células tumorais, e não conhecemos o significado disso: as pessoas podem estar curadas e potencialmente apresentar alguma evidência de câncer que não sabemos como vai evoluir. A definição também muda se levarmos em conta a especificidade de algumas doenças — o melanoma, tipo de câncer de pele, por exemplo, pode apresentar recidivas até 15 anos depois. Essa pessoa que teve o diagnóstico 15 anos antes e que ainda tem células cancerosas pode estar levando uma vida normal hoje em dia. Posso dizer que essa está curada? Eu diria que não. Então a definição de cura é complicada.
Qual a tendência para a definição de cura do câncer ?
O que tem sido considerado mais valorizado é a relação entre o câncer e nosso sistema imune. Desde 2012, essa relação se tornou cada vez mais próxima: a Sociedade Americana de Oncologia classificou os avanços na área da imunoterapia como os mais importantes, e o Prêmio Nobel de Medicina em 2018 coroou pesquisadores nessa área ( os imunologistas James P. Allison, dos Estados Unidos, e Tasuku Honjo, do Japão ). Nesse sentido, acredito que a cura dependa de duas coisas: a natureza do câncer e o hospedeiro que é capaz de reagir. Eu diria que atualmente a questão mais fundamental não é exatamente a cura, mas a transformação do câncer em uma doença crônica, em que os indivíduos consigam conviver normalmente com a ajuda de tratamentos acessíveis. Nesse sentido, controlar o câncer vale mais que a cura.
“Com prevenção em obesidade e exercício, haveria redução de 30% no câncer de mama”
O que mudou a oncologia nos últimos anos foi exatamente esta nova área chamada imuno-oncologia. Sempre reconhecemos que a relação do câncer com o sistema imunológico era fundamental, mas a gente não tinha ideia da dimensão disso. A célula tumoral é capaz de enganar nosso sistema imunológico ao criar uma espécie de escudo que prejudica sua identificação e destruição pelo nosso corpo. Diante de novas moléculas que foram identificadas recentemente, o que rendeu o Nobel a esses dois pesquisadores em 2018, esse escudo é retirado, e conseguimos destruir a célula tumoral. Isso abriu um universo enorme, e estão surgindo uma infinidade de novas moléculas capazes de fazer esse papel. Assim estamos modificando nosso sistema imunológico para criar “supercélulas” e atacar o câncer.
Mas há também efeitos colaterais, certo?
Existem entraves na administração desses novos medicamentos que não os transformam numa panaceia. De fato a imunoterapia representa um avanço muito grande, mas a gente tem que lembrar que essas drogas liberam nosso sistema imunológico. Isso vai reconhecer as células estranhas que são câncer, mas em cerca de 15% dos casos, essas reações imunológicas podem se voltar contra outras células do nosso corpo, que precisa de freios. O que estamos fazendo é retirar esses freios. Se eu for picado por um inseto, meu corpo produz uma reação inflamatória na ferida, e se retiramos todos os freios do sistema imunológico, isso pode se alastrar para o corpo inteiro. Isso também pode acontecer em um tratamento contra o câncer. Essas drogas trouxeram novos aspectos com os quais ainda estamos aprendendo a lidar.
Quais são as expectativas de a imuno-oncologia alcançar o grande público?
Esta é uma questão fundamental: o custo anual de uma dessas drogas é de aproximadamente US$ 120 mil. Temos cerca de 60 mil novos casos de câncer de pulmão e metade deles vai evoluir para um quadro avançado. Para tratar essas 30 mil pessoas com as novas drogas, gastaríamos, com cada uma delas, cerca de R$ 450 mil por ano, por um tempo indefinido. Se a gente considerar que metade dos pacientes estará viva depois de quatro anos, devemos pensar em como financiar esse cenário — e essa é uma pergunta ainda sem solução. O que se espera é que algum mecanismo seja descoberto de forma a interromper a necessidade de uso do medicamento depois de certo tempo. Essas drogas não estão disponíveis no SUS, e o que temos visto é um processo cada vez maior de judicialização da medicina, com pessoas entrando na Justiça para ter acesso a esses tratamentos dentro do sistema público ou privado. Acho que até agora não há fórmula mágica.
Segundo um relatório de 2018 da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, os casos no mundo aumentaram 20% nos últimos seis anos. Qual o motivo desse crescimento?
Certamente o maior causador de câncer até 2030 será a obesidade. A gente deve reconhecer o sobrepeso como uma fábrica de radicais livres e de substâncias tóxicas agressivas ao DNA. Se no início do século XX a gente tinha o cigarro como um grande causador da doença, ele está sendo substituído pela obesidade, fora a ausência de atividades físicas. Com prevenção focada nesses dois aspectos, haveria uma redução de 30% nos casos de câncer de mama, por exemplo. Precisamos investir na prevenção pensando em quanto vamos economizar no futuro. Os gastos anuais com câncer no mundo são estimados em US$1 trilhão, mas acredita-se que a cada US$ 1 bilhão investido na prevenção, são economizados US$ 100 bilhões em tratamentos.
Onde o Brasil está em relação ao combate ao câncer?
Acho que o Brasil está muito mal, mas houve algumas iniciativas aqui absolutamente incríveis, entre elas o Hospital de Amor, em Barretos, São Paulo. A pesquisa e os tratamentos dessa instituição filantrópica são de ponta, um exemplo de que essa realidade pode ser instituída no país. A situação no Brasil é a de que até gastamos, mas gastamos muito mal com relação ao câncer. Investimos pouco na detecção precoce da doença e muito com tratamentos caros para pacientes em estágio já avançado. Fora isso, temos grande dificuldade em valorizar os cuidados paliativos, e é lamentável que tenhamos um acesso restrito da população a esforços que estão além da doença. A lei dos 60 dias, por exemplo, que estipula que o tratamento deve começar no máximo 60 dias após o diagnóstico na rede, é falaciosa. Até que uma paciente de câncer de mama faça todos os procedimentos necessários, desde o reconhecimento de um nódulo até a mamografia, a biópsia e o início do tratamento, passando por diferentes unidades e tendo que esperar entre esses procedimentos, já se passaram meses.
Fonte: O Globo